Um guia completo e profissional sobre as técnicas, protocolos e padrões de qualidade para a coleta de amostras biológicas, desenvolvido para biomédicos e profissionais de laboratório clínico.
1A Flebotomia no Contexto da Biomedicina Laboratorial
2Bases Legais, Padrões de Qualidade e Biossegurança
3Variáveis Pré-Analíticas e Preparação do Paciente
4Procedimento Padrão de Coleta Venosa (Flebotomia)
5Tubos de Coleta, Aditivos e Sequência Padrão
Capítulo 1
A Flebotomia no Contexto da Biomedicina Laboratorial
I. O Papel do Biomédico na Coleta
O profissional Biomédico desempenha um papel central e crítico dentro da rotina laboratorial, sendo responsável pelo procedimento correto da coleta do material biológico essencial para a realização dos exames em diversas categorias. No Laboratório de Análises Clínicas, a punção venosa destaca-se como o principal método de obtenção de material sanguíneo. Esta responsabilidade exige não apenas destreza técnica, mas um entendimento profundo dos processos de qualidade que garantam a validade e a precisão do diagnóstico final.
A importância dos exames laboratoriais na definição diagnóstica, com toda a precisão possível, é inegável. Consequentemente, a busca pela qualidade e excelência na rotina e nos processos internos do laboratório constitui um diferencial fundamental para a segurança do paciente e a proteção institucional. A proficiência na coleta sanguínea é, portanto, uma competência primordial que coloca o biomédico na linha de frente da garantia da qualidade do serviço.
II. Terminologia Essencial e Métodos de Coleta
A coleta de sangue é tecnicamente referida como Flebotomia. Dentro do escopo das Análises Clínicas, o biomédico deve dominar diversas técnicas de obtenção de espécimes:
Punção Venosa:
O método mais comum para exames clínicos de sangue, envolve a remoção de uma quantidade de sangue por meio de uma agulha acoplada a uma seringa ou a um recipiente (sistema a vácuo).
Punção Arterial:
Necessário para exames específicos, como Gasometria Arterial.
Punção Capilar (Digital):
Mais frequentemente associada à pediatria ou aos testes rápidos, envolve a coleta de sangue capilar.
Outras Coletas:
Embora a punção sanguínea seja central, o biomédico também pode estar envolvido na coleta de outras amostras biológicas, como a raspagem de superfície óssea (com bisturi ou instrumento similar) ou a coleta de swab para análises microbiológicas.
Independentemente do método, o paciente deve ser integralmente orientado sobre o procedimento desde o início até sua conclusão.
III. A Fase Pré-Analítica: O Dominador Crítico da Qualidade Laboratorial
A gestão da qualidade laboratorial é dividida em três fases: pré-analítica, analítica e pós-analítica. A fase pré-analítica, que engloba todas as atividades desde a solicitação do exame até o início da análise da amostra, é estatisticamente a fase que concentra o maior percentual de erros. Esses erros são amplamente atribuídos à atividade humana e à ausência de padronização em procedimentos. As falhas na fase pré-analítica geram consequências graves que comprometem a fase analítica e, consequentemente, a confiabilidade do resultado final.
O profissional que atua na coleta é o principal agente de controle de qualidade nesta fase inicial. Um erro na coleta não apenas invalida a amostra, mas afeta diretamente a segurança do paciente e a correção do laboratório. A falha na padronização, portanto, não é meramente um problema técnico, mas uma deficiência sistêmica na gestão do processo.
Tipos de Erros Pré-Analíticos
Os erros mais comuns estão associados à gestão da informação, ao preparo do paciente e à técnica de manipulação.
1. Erros Humanos e de Processo: Inclui identificação incorreta do paciente ou da amostra, cadastro inadequado, interpretação errônea da requisição, e orientação específica ao paciente.
2. Erros Técnicos: Abrangem o uso de aditivo inadequado, falha na homogeneização, centrifugação imprópria, transporte inadequado da amostra, e contaminação entre amostras.
O ato de coleta, além de técnico, é legal. A documentação adequada e a comunicação com o paciente são requisitos essenciais. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) é um exemplo de documento que reforça a necessidade de o paciente compreender o procedimento, modificando a orientação verbal em um requisito ético e legal.
Capítulo 2
Bases Legais, Padrões de Qualidade e Biossegurança
A prática da flebotomia no Brasil é regida por normas sanitárias e padrões técnicos internacionais, estabelecendo a coleta como um processo de alta responsabilidade regulatória.
I. Requisitos Técnico-Sanitários (ANVISA RDC 786/2023)
A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 786, de 05 de maio de 2023, representa o marco regulatório atual para o funcionamento de Laboratórios Clínicos e outros Serviços que executam Exames de Análises Clínicas (EAC).
Classificação dos Serviços:
A RDC 786/2023 classifica os serviços em Tipo I, Tipo II e Tipo III, detalhando diferentes requisitos para cada um. Um Laboratório Clínico completo geralmente se enquadra no Serviço Tipo III, mas a resolução se aplica a todos os pontos de coleta.
Infraestrutura e Iluminação:
A infraestrutura física da sala de coleta deve garantir o atendimento individualizado do paciente. A iluminação deve ser planejada meticulosamente para não prejudicar a avaliação clínica e, crucialmente, a coloração da pele do paciente durante a punção.
Gestão de Documentos:
A legislação exige que toda a documentação, incluindo procedimentos operacionais padrão (POPs), registros e alterações, seja mantida e arquivada por um período mínimo de 5 anos. As alterações nos registros deverão ser datadas e assinadas pelo responsável, preservando o dado original.
II. Recomendações Nacionais e Internacionais de Referência
A padronização técnica da flebotomia é baseada em diretrizes de organismos especializados:
SBPC/ML:
Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial - As recomendações da SBPC/ML para coleta de sangue venoso são a norma técnica nacional. O documento fornece orientações abrangentes sobre a fase pré-analítica, incluindo fatores de variação, procedimentos de coleta e aspectos de segurança e qualidade.
CLSI:
Clinical and Laboratory Standards Institute - O documento CLSI H3-A6 estabelece procedimentos de consenso global para a coleta de espécimes diagnósticos por venopunção. A sequência de coleta de tubos a vácuo aplicada exclusivamente em laboratórios brasileiros é baseada diretamente nas diretrizes do CLSI.
A RDC 786/2023 exige a Gestão do Controle da Qualidade (GCQ), que monitora a precisão dos exames. O treinamento do flebotomista deve, portanto, ir além da técnica de punção, integrando a filosofia da qualidade. O uso de checklists e a avaliação de indicadores de qualidade permitem a detecção de erros, a implementação de ações corretivas e preventivas, e a melhoria contínua da eficiência e da custo-efetividade do processo.
III. Segurança e Biossegurança na Sala de Coleta
A biossegurança durante uma flebotomia envolve proteção do profissional e segurança do paciente.
Biossegurança Profissional:
Inclui o uso de Equipamento de Proteção Individual (EPI), como luvas, e a gestão segura dos resíduos. Todo material perfurocortante, incluindo agulhas, deve ser descartado imediatamente após o uso no local adequado (descarpack). Os saneantes e produtos de desinfecção utilizados na sala de coleta deverão ser regularizados junto à Anvisa e utilizados conforme as especificações do fabricante.
Segurança do Paciente:
As complicações da venopunção, embora raras, incluem infecção local, hematoma, lesão nervosa ou síncope vasovagal. O profissional deve ser proficiente na prevenção e manejo dessas intercorrências. O cuidado posterior inclui reavaliar o local da punção após alguns minutos para confirmar a ausência de hemorragia ou hematoma.
Capítulo 3
Variáveis Pré-Analíticas e Preparação do Paciente
O flebotomista deve gerenciar e documentar diversas variáveis que podem, intrinsecamente ou extrinsecamente, variar a concentração dos analitos e, consequentemente, o resultado do exame.
I. Variáveis Não Controláveis (Fisiológicas)
As variações fisiológicas requerem registro específico para a interpretação clínica:
Variação Cronobiológica:
A concentração de muitos analitos, como hormônios, varia de acordo com o ritmo circadiano. O horário exato da coleta deve ser registrado com precisão.
Idade e Gênero:
Fatores intrínsecos que influenciam a faixa de referência e devem ser confirmados na requisição.
Posição e Atividade Física:
O paciente deve estar em repouso por, no mínimo, 10 minutos antes da coleta. A postura (ortostática ou deitada) pode alterar a concentração de proteínas e analitos ligados a elas devido à redistribuição de fluidos (hemoconcentração).
II. Variáveis Controláveis (Procedimentais e de Preparação)
Essas variáveis dependem da orientação e adesão do paciente e do protocolo do laboratório.
Jejum e Dieta:
O não cumprimento do jejum necessário pode levar à lipemia (presença excessiva de lipídios no soro ou plasma). A lipemia é uma não-conformidade grave, pois a turbidez causada pelas gotículas de gordura interfere diretamente na leitura fotométrica dos analisadores bioquímicos.
Fármacos:
O uso de medicamentos e drogas de abuso deve ser questionado e registrado, pois pode afetar diretamente os resultados laboratoriais.
Impacto Psicológico:
O estresse e a ansiedade (nervosismo) podem alterar a concentração de hormônios, como o cortisol, e outros analitos. A comunicação empática e o conforto do paciente são cruciais.
Comunicação:
A orientação adequada ao paciente antes, durante e após o procedimento é essencial para a qualidade. A orientação inadequada é um erro pré-analítico recorrente.
III. Rejeição do Sítio de Punção
A escolha do local da punção é fundamental para evitar complicações e a contaminação ou diluição da amostra. A coleta é contraindicada nos seguintes locais:
Braço com Mastectomia:
A punção nesse braço aumenta o risco de linfedema e infecção, devido à remoção de gânglios linfáticos.
Locais com Hematoma, Queimaduras ou Cicatrizes:
Essas áreas apresentam alterações teciduais que podem interferir na amostra e causar dor ou dano.
Locais de Infusão Intravenosa (IV):
A coleta em um braço com terapia IV ou transfusão sanguínea pode levar à hemodiluição da amostra. Se for absolutamente necessária a coleta no mesmo membro, o fluxo de infusão deve ser totalmente descontinuado, e o profissional deve executar uma assepsia rigorosa.
Capítulo 4
Procedimento Padrão de Coleta Venosa (Flebotomia)
A execução da flebotomia deve seguir um protocolo rigorosamente padronizado, em conformidade com as diretrizes internacionais.
I. Preparação e Seleção de Materiais
A preparação envolve a confirmação da requisição, a seleção dos tubos corretos para as análises solicitadas e a estimativa do volume de sangue a ser coletado. O sistema de coleta descartável é o padrão-ouro, pois garante a proporção exata entre sangue e aditivo, prevenindo erros de hemodiluição ou volume insuficiente. A agulha 21G (geralmente de cor verde) é a mais utilizada, enquanto a 23G (mais fina) pode ser reservada para pacientes com veias frágeis.
II. Técnica de Venopunção Passo a Passo
O procedimento padrão de punção venosa inclui as seguintes etapas críticas:
1
Higienização das Mãos e Luvas
Higienização rigorosa das mãos e colocação correta das luvas de procedimento.
2
Aplicação do Torniquete
Deve ser aplicado em posição adequada e, essencialmente, por tempo mínimo. A verificação do tempo de aplicação do torniquete é um ponto de controle fundamental, pois o uso prolongado (> 1 minuto) provoca hemoconcentração e isquemia local.
3
Seleção e Palpação da Veia
A fossa cubital é o local de escolha. A palpação cuidadosa é essencial para confirmar a localização da veia.
4
Antissepsia do Local
O procedimento deve ser realizado com o antisséptico adequado (geralmente álcool 70%). A técnica de antissepsia deve ser feita em movimento circular, do centro para a periferia.
5
A Punção
Inserir a agulha com o bisel voltado para cima, em um ângulo de 15 a 30 graus. A punção deve ser suave e precisa para minimizar a dor e o risco de hematoma ou lesão tecidual.
III. Homogeneização e Pós-Coleta
Após a coleta, a homogeneização da amostra é crucial.
Tubo (Aditivo)
Inversões (Mínimo)
Propósito
Citrato de Sódio (Coagulação)
3 a 4 vezes
Necessário para iniciar a ação do anticoagulante; número baixo para evitar ativação plaquetária
Ativador de Coágulo (Soro, c/ Gel)
5 a 8 vezes
Assegura o contato do sangue com o ativador
Heparina (Plasma)
8 a 10 vezes
Assegura a inibição completa da trombina
EDTA (Hematologia)
8 a 10 vezes
Essencial para evitar a formação de microcoágulos e preservar a morfologia celular
Inibidor da Glicólise (Fluoreto)
8 a 10 vezes
Garante a estabilização da glicose e inibição do metabolismo celular
Cuidados Pós-Coleta
Após a retirada da agulha, a compressão do local deve ser mantida. É necessário reconferir o local após alguns minutos para verificar se houve formação de hematoma ou se houve sangramento. A hemólise da amostra, causada pela coleta forçada ou excessiva, é um indicador de falha técnica, pois libera potássio e enzimas intracelulares, invalidando o resultado analítico.
Capítulo 5
Tubos de Coleta, Aditivos e Sequência Padrão
O sistema de coleta a vácuo depende da seleção correta e sequenciamento dos tubos, uma vez que a contaminação cruzada de aditivos (carryover) compromete a integridade da amostra.
I. Função dos Aditivos e Núcleos Padrão
Os tubos contêm aditivos que podem acelerar a coagulação (Ativador de Coágulo), inibi-la (EDTA, Heparina, Citrato) ou estabilizar analitos específicos (Fluoreto de Sódio).
Anticoagulantes
Citrato de Sódio:
Quela o cálcio, preservando a amostra para testes de coagulação (TP, TTPA). A proporção sangue/anticoagulante 9:1 é crítica.
EDTA (Ácido Etilenodiaminotetracético):
Quela o cálcio, utilizado majoritariamente em Hematologia. É o anticoagulante que mais oferece risco de contaminação, pois se for transferido para outros tubos, pode quelar íons necessários para outros testes.
Heparina:
Atua potencializando a antitrombina, sendo usada para exames de bioquímica de urgência e gasometria.
II. A Ordem Crítica de Coleta (CLSI H3-A6)
A sequência de coleta é definida pelo CLSI (Documento H3-A6) para evitar o risco de transferência de aditivos que poderiam contaminar os tubos subsequentes. Por essa razão, os tubos com EDTA são colocados no final da sequência.
Ordem
Tampa
Aditivo
Aplicação Principal
Inversões
1
Diversas
Meio de Cultura
Hemocultura (Microbiologia)
N/D
2
Azul Claro
Citrato de Sódio
Coagulação (TP, TTPA)
3 a 4 vezes
3
Vermelho (Seco) / Amarelo/Ouro (Gel)
Ativador de Coágulo
Bioquímica, Sorologia, Hormônios
5 a 8 vezes
4
Verde
Heparina (Lítio ou Sódio)
Bioquímica Urgente, Gasometria
8 a 10 vezes
5
Lilás/Roxo
EDTA (K2/K3)
Hematologia (Hemograma, VHS)
8 a 10 vezes
6
Cinza
Fluoreto de Sódio/Oxalato
Glicose, Lactato
8 a 10 vezes
III. Coleta para Hemocultura
A hemocultura é um exame de microbiologia com alto risco de contaminação por microrganismos da pele, exigindo uma antissepsia mais rigorosa.
Antissepsia Específica
Deve-se utilizar uma solução antisséptica de alta eficácia (como Álcool 70% seguido de PVPI ou Clorexidina). A aplicação deve ser vigorosa e seguida de tempo de secagem natural. A área puncionada não pode ser tocada ou apalpada após a antissepsia.