Laboratório de Flebotomia e Biomedicina

Apostila: Curso Prático de Coleta

Laboratório de Flebotomia e Biomedicina

Um guia completo e profissional sobre as técnicas, protocolos e padrões de qualidade para a coleta de amostras biológicas, desenvolvido para biomédicos e profissionais de laboratório clínico.

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Sumário

Capítulo 1

A Flebotomia no Contexto da Biomedicina Laboratorial

I. O Papel do Biomédico na Coleta

O profissional Biomédico desempenha um papel central e crítico dentro da rotina laboratorial, sendo responsável pelo procedimento correto da coleta do material biológico essencial para a realização dos exames em diversas categorias. No Laboratório de Análises Clínicas, a punção venosa destaca-se como o principal método de obtenção de material sanguíneo. Esta responsabilidade exige não apenas destreza técnica, mas um entendimento profundo dos processos de qualidade que garantam a validade e a precisão do diagnóstico final.

A importância dos exames laboratoriais na definição diagnóstica, com toda a precisão possível, é inegável. Consequentemente, a busca pela qualidade e excelência na rotina e nos processos internos do laboratório constitui um diferencial fundamental para a segurança do paciente e a proteção institucional. A proficiência na coleta sanguínea é, portanto, uma competência primordial que coloca o biomédico na linha de frente da garantia da qualidade do serviço.

II. Terminologia Essencial e Métodos de Coleta

A coleta de sangue é tecnicamente referida como Flebotomia. Dentro do escopo das Análises Clínicas, o biomédico deve dominar diversas técnicas de obtenção de espécimes:

Punção Venosa:
O método mais comum para exames clínicos de sangue, envolve a remoção de uma quantidade de sangue por meio de uma agulha acoplada a uma seringa ou a um recipiente (sistema a vácuo).
Punção Arterial:
Necessário para exames específicos, como Gasometria Arterial.
Punção Capilar (Digital):
Mais frequentemente associada à pediatria ou aos testes rápidos, envolve a coleta de sangue capilar.
Outras Coletas:
Embora a punção sanguínea seja central, o biomédico também pode estar envolvido na coleta de outras amostras biológicas, como a raspagem de superfície óssea (com bisturi ou instrumento similar) ou a coleta de swab para análises microbiológicas.

Independentemente do método, o paciente deve ser integralmente orientado sobre o procedimento desde o início até sua conclusão.

III. A Fase Pré-Analítica: O Dominador Crítico da Qualidade Laboratorial

A gestão da qualidade laboratorial é dividida em três fases: pré-analítica, analítica e pós-analítica. A fase pré-analítica, que engloba todas as atividades desde a solicitação do exame até o início da análise da amostra, é estatisticamente a fase que concentra o maior percentual de erros. Esses erros são amplamente atribuídos à atividade humana e à ausência de padronização em procedimentos. As falhas na fase pré-analítica geram consequências graves que comprometem a fase analítica e, consequentemente, a confiabilidade do resultado final.

O profissional que atua na coleta é o principal agente de controle de qualidade nesta fase inicial. Um erro na coleta não apenas invalida a amostra, mas afeta diretamente a segurança do paciente e a correção do laboratório. A falha na padronização, portanto, não é meramente um problema técnico, mas uma deficiência sistêmica na gestão do processo.

Tipos de Erros Pré-Analíticos

Os erros mais comuns estão associados à gestão da informação, ao preparo do paciente e à técnica de manipulação.

  • 1. Erros Humanos e de Processo: Inclui identificação incorreta do paciente ou da amostra, cadastro inadequado, interpretação errônea da requisição, e orientação específica ao paciente.
  • 2. Erros Técnicos: Abrangem o uso de aditivo inadequado, falha na homogeneização, centrifugação imprópria, transporte inadequado da amostra, e contaminação entre amostras.

O ato de coleta, além de técnico, é legal. A documentação adequada e a comunicação com o paciente são requisitos essenciais. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) é um exemplo de documento que reforça a necessidade de o paciente compreender o procedimento, modificando a orientação verbal em um requisito ético e legal.

Capítulo 2

Bases Legais, Padrões de Qualidade e Biossegurança

A prática da flebotomia no Brasil é regida por normas sanitárias e padrões técnicos internacionais, estabelecendo a coleta como um processo de alta responsabilidade regulatória.

I. Requisitos Técnico-Sanitários (ANVISA RDC 786/2023)

A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 786, de 05 de maio de 2023, representa o marco regulatório atual para o funcionamento de Laboratórios Clínicos e outros Serviços que executam Exames de Análises Clínicas (EAC).

Classificação dos Serviços:
A RDC 786/2023 classifica os serviços em Tipo I, Tipo II e Tipo III, detalhando diferentes requisitos para cada um. Um Laboratório Clínico completo geralmente se enquadra no Serviço Tipo III, mas a resolução se aplica a todos os pontos de coleta.
Infraestrutura e Iluminação:
A infraestrutura física da sala de coleta deve garantir o atendimento individualizado do paciente. A iluminação deve ser planejada meticulosamente para não prejudicar a avaliação clínica e, crucialmente, a coloração da pele do paciente durante a punção.
Gestão de Documentos:
A legislação exige que toda a documentação, incluindo procedimentos operacionais padrão (POPs), registros e alterações, seja mantida e arquivada por um período mínimo de 5 anos. As alterações nos registros deverão ser datadas e assinadas pelo responsável, preservando o dado original.

II. Recomendações Nacionais e Internacionais de Referência

A padronização técnica da flebotomia é baseada em diretrizes de organismos especializados:

SBPC/ML:
Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial - As recomendações da SBPC/ML para coleta de sangue venoso são a norma técnica nacional. O documento fornece orientações abrangentes sobre a fase pré-analítica, incluindo fatores de variação, procedimentos de coleta e aspectos de segurança e qualidade.
CLSI:
Clinical and Laboratory Standards Institute - O documento CLSI H3-A6 estabelece procedimentos de consenso global para a coleta de espécimes diagnósticos por venopunção. A sequência de coleta de tubos a vácuo aplicada exclusivamente em laboratórios brasileiros é baseada diretamente nas diretrizes do CLSI.

A RDC 786/2023 exige a Gestão do Controle da Qualidade (GCQ), que monitora a precisão dos exames. O treinamento do flebotomista deve, portanto, ir além da técnica de punção, integrando a filosofia da qualidade. O uso de checklists e a avaliação de indicadores de qualidade permitem a detecção de erros, a implementação de ações corretivas e preventivas, e a melhoria contínua da eficiência e da custo-efetividade do processo.

III. Segurança e Biossegurança na Sala de Coleta

A biossegurança durante uma flebotomia envolve proteção do profissional e segurança do paciente.

Biossegurança Profissional:
Inclui o uso de Equipamento de Proteção Individual (EPI), como luvas, e a gestão segura dos resíduos. Todo material perfurocortante, incluindo agulhas, deve ser descartado imediatamente após o uso no local adequado (descarpack). Os saneantes e produtos de desinfecção utilizados na sala de coleta deverão ser regularizados junto à Anvisa e utilizados conforme as especificações do fabricante.
Segurança do Paciente:
As complicações da venopunção, embora raras, incluem infecção local, hematoma, lesão nervosa ou síncope vasovagal. O profissional deve ser proficiente na prevenção e manejo dessas intercorrências. O cuidado posterior inclui reavaliar o local da punção após alguns minutos para confirmar a ausência de hemorragia ou hematoma.
Capítulo 3

Variáveis Pré-Analíticas e Preparação do Paciente

O flebotomista deve gerenciar e documentar diversas variáveis que podem, intrinsecamente ou extrinsecamente, variar a concentração dos analitos e, consequentemente, o resultado do exame.

I. Variáveis Não Controláveis (Fisiológicas)

As variações fisiológicas requerem registro específico para a interpretação clínica:

Variação Cronobiológica:
A concentração de muitos analitos, como hormônios, varia de acordo com o ritmo circadiano. O horário exato da coleta deve ser registrado com precisão.
Idade e Gênero:
Fatores intrínsecos que influenciam a faixa de referência e devem ser confirmados na requisição.
Posição e Atividade Física:
O paciente deve estar em repouso por, no mínimo, 10 minutos antes da coleta. A postura (ortostática ou deitada) pode alterar a concentração de proteínas e analitos ligados a elas devido à redistribuição de fluidos (hemoconcentração).

II. Variáveis Controláveis (Procedimentais e de Preparação)

Essas variáveis dependem da orientação e adesão do paciente e do protocolo do laboratório.

Jejum e Dieta:
O não cumprimento do jejum necessário pode levar à lipemia (presença excessiva de lipídios no soro ou plasma). A lipemia é uma não-conformidade grave, pois a turbidez causada pelas gotículas de gordura interfere diretamente na leitura fotométrica dos analisadores bioquímicos.
Fármacos:
O uso de medicamentos e drogas de abuso deve ser questionado e registrado, pois pode afetar diretamente os resultados laboratoriais.
Impacto Psicológico:
O estresse e a ansiedade (nervosismo) podem alterar a concentração de hormônios, como o cortisol, e outros analitos. A comunicação empática e o conforto do paciente são cruciais.
Comunicação:
A orientação adequada ao paciente antes, durante e após o procedimento é essencial para a qualidade. A orientação inadequada é um erro pré-analítico recorrente.

III. Rejeição do Sítio de Punção

A escolha do local da punção é fundamental para evitar complicações e a contaminação ou diluição da amostra. A coleta é contraindicada nos seguintes locais:

Braço com Mastectomia:
A punção nesse braço aumenta o risco de linfedema e infecção, devido à remoção de gânglios linfáticos.
Locais com Hematoma, Queimaduras ou Cicatrizes:
Essas áreas apresentam alterações teciduais que podem interferir na amostra e causar dor ou dano.
Locais de Infusão Intravenosa (IV):
A coleta em um braço com terapia IV ou transfusão sanguínea pode levar à hemodiluição da amostra. Se for absolutamente necessária a coleta no mesmo membro, o fluxo de infusão deve ser totalmente descontinuado, e o profissional deve executar uma assepsia rigorosa.
Capítulo 4

Procedimento Padrão de Coleta Venosa (Flebotomia)

A execução da flebotomia deve seguir um protocolo rigorosamente padronizado, em conformidade com as diretrizes internacionais.

I. Preparação e Seleção de Materiais

A preparação envolve a confirmação da requisição, a seleção dos tubos corretos para as análises solicitadas e a estimativa do volume de sangue a ser coletado. O sistema de coleta descartável é o padrão-ouro, pois garante a proporção exata entre sangue e aditivo, prevenindo erros de hemodiluição ou volume insuficiente. A agulha 21G (geralmente de cor verde) é a mais utilizada, enquanto a 23G (mais fina) pode ser reservada para pacientes com veias frágeis.

II. Técnica de Venopunção Passo a Passo

O procedimento padrão de punção venosa inclui as seguintes etapas críticas:

  1. 1

    Higienização das Mãos e Luvas

    Higienização rigorosa das mãos e colocação correta das luvas de procedimento.

  2. 2

    Aplicação do Torniquete

    Deve ser aplicado em posição adequada e, essencialmente, por tempo mínimo. A verificação do tempo de aplicação do torniquete é um ponto de controle fundamental, pois o uso prolongado (> 1 minuto) provoca hemoconcentração e isquemia local.

  3. 3

    Seleção e Palpação da Veia

    A fossa cubital é o local de escolha. A palpação cuidadosa é essencial para confirmar a localização da veia.

  4. 4

    Antissepsia do Local

    O procedimento deve ser realizado com o antisséptico adequado (geralmente álcool 70%). A técnica de antissepsia deve ser feita em movimento circular, do centro para a periferia.

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    A Punção

    Inserir a agulha com o bisel voltado para cima, em um ângulo de 15 a 30 graus. A punção deve ser suave e precisa para minimizar a dor e o risco de hematoma ou lesão tecidual.

III. Homogeneização e Pós-Coleta

Após a coleta, a homogeneização da amostra é crucial.

Tubo (Aditivo) Inversões (Mínimo) Propósito
Citrato de Sódio (Coagulação) 3 a 4 vezes Necessário para iniciar a ação do anticoagulante; número baixo para evitar ativação plaquetária
Ativador de Coágulo (Soro, c/ Gel) 5 a 8 vezes Assegura o contato do sangue com o ativador
Heparina (Plasma) 8 a 10 vezes Assegura a inibição completa da trombina
EDTA (Hematologia) 8 a 10 vezes Essencial para evitar a formação de microcoágulos e preservar a morfologia celular
Inibidor da Glicólise (Fluoreto) 8 a 10 vezes Garante a estabilização da glicose e inibição do metabolismo celular

Cuidados Pós-Coleta

Após a retirada da agulha, a compressão do local deve ser mantida. É necessário reconferir o local após alguns minutos para verificar se houve formação de hematoma ou se houve sangramento. A hemólise da amostra, causada pela coleta forçada ou excessiva, é um indicador de falha técnica, pois libera potássio e enzimas intracelulares, invalidando o resultado analítico.

Capítulo 5

Tubos de Coleta, Aditivos e Sequência Padrão

O sistema de coleta a vácuo depende da seleção correta e sequenciamento dos tubos, uma vez que a contaminação cruzada de aditivos (carryover) compromete a integridade da amostra.

I. Função dos Aditivos e Núcleos Padrão

Os tubos contêm aditivos que podem acelerar a coagulação (Ativador de Coágulo), inibi-la (EDTA, Heparina, Citrato) ou estabilizar analitos específicos (Fluoreto de Sódio).

Anticoagulantes

Citrato de Sódio:
Quela o cálcio, preservando a amostra para testes de coagulação (TP, TTPA). A proporção sangue/anticoagulante 9:1 é crítica.
EDTA (Ácido Etilenodiaminotetracético):
Quela o cálcio, utilizado majoritariamente em Hematologia. É o anticoagulante que mais oferece risco de contaminação, pois se for transferido para outros tubos, pode quelar íons necessários para outros testes.
Heparina:
Atua potencializando a antitrombina, sendo usada para exames de bioquímica de urgência e gasometria.

II. A Ordem Crítica de Coleta (CLSI H3-A6)

A sequência de coleta é definida pelo CLSI (Documento H3-A6) para evitar o risco de transferência de aditivos que poderiam contaminar os tubos subsequentes. Por essa razão, os tubos com EDTA são colocados no final da sequência.

Ordem Tampa Aditivo Aplicação Principal Inversões
1 Diversas Meio de Cultura Hemocultura (Microbiologia) N/D
2 Azul Claro Citrato de Sódio Coagulação (TP, TTPA) 3 a 4 vezes
3 Vermelho (Seco) / Amarelo/Ouro (Gel) Ativador de Coágulo Bioquímica, Sorologia, Hormônios 5 a 8 vezes
4 Verde Heparina (Lítio ou Sódio) Bioquímica Urgente, Gasometria 8 a 10 vezes
5 Lilás/Roxo EDTA (K2/K3) Hematologia (Hemograma, VHS) 8 a 10 vezes
6 Cinza Fluoreto de Sódio/Oxalato Glicose, Lactato 8 a 10 vezes

III. Coleta para Hemocultura

A hemocultura é um exame de microbiologia com alto risco de contaminação por microrganismos da pele, exigindo uma antissepsia mais rigorosa.

Antissepsia Específica

Deve-se utilizar uma solução antisséptica de alta eficácia (como Álcool 70% seguido de PVPI ou Clorexidina). A aplicação deve ser vigorosa e seguida de tempo de secagem natural. A área puncionada não pode ser tocada ou apalpada após a antissepsia.